Saturday, September 24, 2005

Carrega

Rodo a chave e rolo para a estrada. Sinto o pé no pedal mas tenho medo de o carregar, estou tenso e sinto uma torrente de adrenalina a tomar-me conta das acções. Ao mesmo tempo estou concentrado só numa coisa, no que me passa à frente, na rapidez com que me aproximo do que está adiante. Oiço aquele cantar estridente e sinto-me arrepiado, dou mais um pouco de pé, parece que me pesa toneladas. Aproximo-me, desvio-me e desapareço a voar rente ao chão.
Tudo me aparece a um ritmo frenético e diabólico. Tenho receio, mas estou tão compenetrado, que continuo a carregar.
Obstáculo, reduzo para quarta e terceira num ápice, primo o travão comedidamente mas de forma progressiva. Segunda, já mais calmo abrando.
Paro e penso: - Tudo o que vem atrás está a aproximar-se. Vou viver tudo novamente? Não, não vou, ainda me têm que apanhar primeiro.
Meto primeira e carrego tudo o que tenho no pedal, a minha vida, a minha raiva a minha vontade de me suplantar, a minha força. Algo me diz: -Carrega até não teres mais pedal, CARREGA. E oiço o sublime, é como se me deslocasse num vácuo, nada do que está lá fora me toca, pois só oiço o meu motor a berrar em alta. A realidade sou eu a centenas à hora, a realidade sou eu e o que me sustenta a centímetros do chão, lá fora nada é real. Como é que pode ser real se eles nem estão a pensar à velocidade que eu? Eu estou a uma rapidez impossível de atingir pelo agora, estou numa outra dimensão mas a avançar rapidamente através da vossa, tão rapidamente que quando derem por mim, eu já não estou lá.
Desapareci no horizonte, nada nem ninguém me acompanha.
Conseguem ver aquela parte do horizonte que não alcançam? Sim, será aí que me vão encontrar, sempre, mas sempre a carregar no pedal.

Thursday, September 22, 2005

Quem me dera ter sido o autor deste texto

"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas.Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la.Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível.A culpa é minha.O que for incompreensível não é mesmo para se perceber.Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco doque tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.O que quero é fazer o elogio do amor puro.Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade.Já ninguém quer viver um amor impossível.Já ninguém aceita amar sem uma razão.Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.Porque dá jeito.Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.Porque se dão bem e não se chateiam muito.Porque faz sentido.Porque é mais barato, por causa da casa.Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas dalavandaria.Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo deantemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".O amor passou a ser passível de ser combinado.Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomamdecisões.O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica decamaradagem.A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível.O amor tornou-se uma questão prática.O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam"praticamente" apaixonadas.Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, doamor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas,farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como osde hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo deousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tábem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos,bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém seapaixona?Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, odesequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro acomer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?O amor é uma coisa, a vida é outra.O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, ointervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorroda tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso.Odeio os novos casalinhos.Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice,facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoalda pantufa e da serenidade.Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo.O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é paranos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão deazar.O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempoainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.O amor é uma coisa, a vida é outra.A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina.O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é umdestino. O amor puro é uma condição.Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem sesente.O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrásdo que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão ébonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser.O amor é uma coisa, a vida é outra.A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém.Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coraçãoguarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida,quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nossoamor, o amor que se lhe tem.Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não seter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viversozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz.Não se pode ceder. Não se pode resistir.A vida é uma coisa, o amor é outra.A vida dura a Vida inteira, o amor não.Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

Autoria: Miguel Esteves Cardoso

Thursday, September 15, 2005

Quem é que eu sou? Alguém me perguntou

Eu não sei quem sou. Gostava de saber, mas sei que não gosto muito do que sou. Sou dependente demais dos outros, a minha felicidade devia de depender mais de mim e menos das pessoas que amo, mas se calhar este é o preço que pago por não ter conflitos existênciais. Parece um contra-senso, mas a verdade é que eu sei o que sou, sei que posso confiar em mim, sei de onde vêm todas as minhas dúvidas e sei que o que sou não depende só de mim. Mas também sei que não sou um ser fixo, sem que cresço ou decresço consoante as vicissitudes da vida, mas sei que no fim acabo por ser eu, íntegro, honesto e às vezes determinado. Mas eu sou aquilo que os meus amigos são. Sou aquilo que a minha família é. Sou aquilo que o meu amor é. Sou aquilo que o ambiente que me rodeia é.
Portanto quando me perguntares o que sou, pensa que nunca ninguém é o que quer, e que aquilo que tu és hoje, amanhã podes já não o ser.
Eu ontem era feliz, hoje sou apenas consciente.
Ontem era optimista, hoje sou pragmático.
Na verdade eu já não sou eu, pois eu nunca fui assim.

Sunday, September 11, 2005

Estou de volta. De volta à vida simples e fácil, de volta ao mundo onde o que interessa é ter.
Pobres de nós que vivemos em segurança, pobres de nós que temos tempo para pensar no que podiamos fazer e ter melhor. No fim do mundo, a leste de Angola uma mulher passou por mim, carregava um balde na cabeça e levava o seu bébé nas costas preso por um pano (deveriam estar uns 35 graus sofucantes e a estrada era areia onde os nossos pés se enterravam) acenei-lhe pois nao tive tempo de lhe tirar uma foto e ela simplesmente sorriu. Um dos carros atrás parou para falar com ela, e informou-me que a senhora caminhava para a aldeia mais próxima a 45 km. Apesar de tudo ela não pediu nada, nem água, nem comida, simplesmente sorriu e foi-se embora a caminhar. No momento em que eu lhe disse adeus senti que realmente sou pobre, pobre por não me contentar em estar vivo, pobre por achar que a vida tem que ter um objectivo. Mas o que vi na expressão, não só daquela mulher mas de muito mais gente, fez-me acreditar que a riqueza está em ser feliz por existir e tudo o resto é o nosso senso de materialismo não nos deixa contentar com o que temos. Acreditem que eu não falo apenas de bens materiais mas de tudo o que achamos fazer-nos falta.
"if i hadnt see such riches, i could live with being poor"