Thursday, September 22, 2005

Quem me dera ter sido o autor deste texto

"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas.Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la.Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível.A culpa é minha.O que for incompreensível não é mesmo para se perceber.Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco doque tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.O que quero é fazer o elogio do amor puro.Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade.Já ninguém quer viver um amor impossível.Já ninguém aceita amar sem uma razão.Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.Porque dá jeito.Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.Porque se dão bem e não se chateiam muito.Porque faz sentido.Porque é mais barato, por causa da casa.Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas dalavandaria.Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo deantemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".O amor passou a ser passível de ser combinado.Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomamdecisões.O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica decamaradagem.A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível.O amor tornou-se uma questão prática.O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam"praticamente" apaixonadas.Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, doamor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas,farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como osde hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo deousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tábem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos,bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém seapaixona?Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, odesequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro acomer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?O amor é uma coisa, a vida é outra.O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, ointervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorroda tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso.Odeio os novos casalinhos.Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice,facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoalda pantufa e da serenidade.Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo.O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é paranos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão deazar.O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempoainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.O amor é uma coisa, a vida é outra.A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina.O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é umdestino. O amor puro é uma condição.Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem sesente.O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrásdo que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão ébonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser.O amor é uma coisa, a vida é outra.A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém.Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coraçãoguarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida,quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nossoamor, o amor que se lhe tem.Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não seter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viversozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz.Não se pode ceder. Não se pode resistir.A vida é uma coisa, o amor é outra.A vida dura a Vida inteira, o amor não.Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

Autoria: Miguel Esteves Cardoso

0 Comments:

Post a Comment

<< Home